07 março 2006

Dona Albertina

Peço desculpa por tornar pública uma vivência tão pessoal. Prestam-se tantas homenagens neste país que não faria sentido não prestar a mais importante. Na véspera do Dia Internacional da Mulher, quero falar da mulher mais importante que conheci.

A Matriarca
Vejam bem. Saí à rua para trabalhar e a vizinha da frente interrompeu-me a marcha para saber da Dona Albertina. Respondi-lhe a verdade: “Está mal. Está em estado de coma induzido e há cinco órgãos que entraram em falência”. Repeti o que me tinham repetido do que o médico tinha dito, sabendo que a dimensão da tragédia se resumia a duas palavras: “está mal”.
A senhora de quarenta e tal anos, vizinha de Dona Albertina há menos de dez anos, com dois filhos ainda para criar, chorou e quis dizer-me: “A sua mãe faz-me tanta falta!”. Dá tristeza, mas é tão bonito ouvir dizer isto da nossa própria mãe.
A Dona Albertina faz falta a muita gente. Porque soube sempre ser uma católica praticante. De ir à missa, mas mais do que isso, de estender a mão a quem parece não ter chegado a mão de Deus.
Dona Albertina começou há mais de 78 anos, em Cinfães do Douro, e cresceu no Ameal, um bairro de vivendas geminadas, mandado construir por Salazar para os funcionários do Estado. Nessa altura, os homens já preparavam a segunda guerra mundial e o país “orgulhosamente só” vivia na pobreza. Foi assim que ela cresceu e conheceu o José Baldaia, da freguesia de Santo Isidoro na aldeia da Livração no Marco de Canavezes.
A vida a dois, e depois a 3,4,5,6,7,8,9,10 e, finalmente, a 11, foi feita paredes meias com o Regado, um bairro social, também mandado construir por Salazar junto às vivendas para que os deserdados do regime pudessem “aprender” com a classe média que se formava.

Dona Albertina não era salazarenta, nem pouco mais ou menos, mas foi quem melhor soube olhar para os mais fracos do bairro vizinho. Toda a vida a vi olhando por crianças do Regado e por mães a quem não foi ensinado o papel de mãe ou vitimas de casamentos sem sentido. Para elas, a Dona Albertina sempre teve uma palavra de apoio. E, nos casos mais graves, roupa e comida. A Dona Albertina, assim tratada com respeito e carinho por estas mulheres, faz falta a muita gente.
Dona Albertina criou nove filhos, muitas vezes em grandes dificuldades, e a todos ensinou que a honestidade e o trabalho são virtudes com que um Homem, mesmo que não tenha mais nada, consegue viver de cabeça erguida.

Ela deu tudo isto ao país e em troca recebeu, apenas, uma pequena pensão de sobrevivência. Não se queixava. Também nos ensinou que mais importante que o que se ganha é o que se poupa.
Dona Albertina fez, apenas, a quarta classe, mas nunca deixou de ler poesia. A mim enviou-me há uns anos um poema de Torga (Recomeça, sempre) e eu retive o final:
“És Homem, não te esqueças,
Só é tua a loucura,
Onde com lucidez te reconheças.”
A Dona Albertina nunca foi de desistir. Venceu cancros, sujeitou-se a cirurgias várias e em poucos dias esteve de volta às lides da casa. Encontrou forças e ganhou tempo para apoiar cada um dos filhos. Foi assim até sábado passado.
Faz 79 anos no dia de Páscoa. Se a história dos milagres é verdadeira, ela vai voltar.

Porque a Dona Albertina faz falta a muita gente.

P.S. Este é o último post que escrevo no Insubmisso. Porque, para mim, deixou de fazer sentido mandar palpites sobre coisas tão pouco importantes como a politiquice.

17 comentários:

FT disse...

A Dona Albertina não precisa de voltar porque nunca vai partir.

Rui MCB disse...

Estas histórias são mesmo para serem contadas - já comentá-las tem que se lhe diga, mas também tem o silêncio. E também têm política e coragem pelo meio.
Se os milagres fossem a votos...
Espero um dia, se ele chegar, ter metade da história e da coragem para a contar (a da minha mãe, por exemplo). Um abraço.

David Dinis disse...

Eu, que não conheço a Dona Albertina, só posso dizer que gosto muito dela, porque ela formou um filho fantástico e fez uma família ímpar de pessoas de bem. Eu, que não a conheço mas conheço o Paulo, a Bárbara e os pais dela, só quero dar-lhes a todos o maior abraço do mundo.

Mira disse...

1º não vais deixar de escrever aqui, porque eu não deixo

2ºconcordo com o ft. quem fica aqui não parte nunca

3º deixo-te uma história que escrevi noutro sítio, é sobre uma amiga

"lá estava ela absorvida nas suas fichas de inscrição... crianças que entram, crianças que saiem. um infantário tem sempre tanta ficha de inscrição, mesmo em país com taxas decrescentes de natalidade. e tanta ficha e tanta declaração. via-a todos os dias duas vezes, duas vezes. ao passar ali no seu gabinete e depois mais tarde na sua casa. dois espaços que eram a sua vida. dois espaços que eram a minha vida. só o sorriso que tinha é que era sempre o mesmo. não havia resquício de angústias, de dores, de ressentimentos. recebia-me sempre com o mesmo sorriso e com a mesma alegria, mesmo que por dentro fosse morrendo, sim porque todos nós vamos morrendo. mas o gabriel garcia marquez diz que não, que só morremos quando somos esquecidos. e se esse é o critério, ela não morre, ela vai estar sempre viva, aqui, apertada, onde ninguém entra. e continua-me a sorrir sempre que choro, ou choro simplesmente porque, ela aqui dentro continua a sorrir. ai o nosso último chá ficou por tomar e as bolachas de manteiga continuam no mesmo lugar, não tenho coragem, ainda, de lhes tocar. mesmo que duas crianças que me habitam me pulem para cima pedindo-as. porque aquelas bolachas e o teu sorriso, fazem parte do meu santuário."

um abraço

Blogger disse...

paulo, espero que já te tenham convencido a ficar. eu gosto de te ler. e gosto do que tu escreves. sobre a Dona Albertina.e tb sobre politiquices. um bj

Anónimo disse...

Deviamos ser condenados a ter pelo menos uma D.Albertina na vida, ainda que um dia também nos sentissemos condenados com a possibilidade de a ver partir...

MBA disse...

Só um pedido: Não deixes de escrever. Porque tu gostas, e a malta gosta de te ler.

BB disse...

Não vamos deixar que o Paulo deixe de escrever, porque a Dona Albertina gosta que ele faça aquilo que ele gosta de fazer.
Já agora, obrigada a todos pela solidariedade.

FTA disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Pedro Correia disse...

Muito bonito o teu texto. E percebo muito bem a tua posição. Mas fica o apelo: não deixes de escrever. Um abraço.

Anónimo disse...

Com uma lágrima a cair, faço-te um apelo: não deixes de escrever, a Dona Albertina, quando acordar, não vai gostar de saber dessa tua decisão. Um abraço, força amigo.

Anónimo disse...

Desejo que o milagre se concretize e que a tua mãe tenha rápidas melhoras. Beijinhos. SAD

Paulo Alves disse...

Com tudo isto que nós conta, se vai partir também nos vai fazer muita falta.
Um abraço sincero de solidariedade.

Anónimo disse...

Nó no estômago. Se é o último, partes em grande.

Diana Ralha

Catarina disse...

Não deixes de escrever [faz falta a quem vem aqui todos os dias].

Estas coisas menores [como as politiquices da vida] ajudam a distrair o espírito.

A força toda dessa mulher que é a tua mãe existe sempre na pessoa que tu és e na de todos a quem faz falta.E muito para além da vida.

Força.

Anónimo disse...

Às vezes, parece que a lágrima que nos aperta o coração mata todas as outras dores vulgares.
E talvez seja apenas a escrita a enxugar-nos, de novo, a alma.
Um abraço
Fernando Madaíl

FTA disse...

Um abraço, Paulo.